Eu não sei se um dia eu vou saber o motivo daquele ato. O que eu sei é que, mesmo me sendo alguém distante, ele me era alguém. Ele me era esses tipos de "alguém" que a tia e a vizinha conhecem porque passou em primeiro lugar em algum tipo de concurso muito concorrido, sempre seguiu as normas, fez tudo como deveria ser feito. E acabou assim, se dependurando em algum lugar dentro da casa, que eu prefiro nunca saber qual foi. Mas sei que vão me contar. Esse tipo de noticia chega tão rápido e demora tanto tempo pra ir embora. Apesar de dever estar preocupada com os pais, irmãos, família em geral (e eu realmente estava), a única coisa que não parava de me atormentar era: ele realmente se matou. Eu já ouvi ameaças como essa ecoarem dentro de mim em certos tardares da noite, e lembro de algum resquício delas em tardes pacatas, mas nunca uma palavra, nem um gesto, nem uma linha chegaram a se materializar.
Não me causa estranheza este tipo de atitude. Sei que somos feito de carne e espírito e que quanto mais espírito e alma se tem, menos nos adaptamos. Alma é a tradução do latim "anima". Desconfie dessas pessoas muito "animadas", tem alma demais lá dentro. Um dia elas ainda vão te chocar. Mas não me lembro dele ser animado. Me lembro dele quieto, mas sempre com um ar sorridente. Não quero tentar adivinhar a razão de um sofrimento tão grande, de tamanha angustia, que termina com um laço em volta do pescoço. Quero apenas dizer que é real. A dor, o choro, o tédio, o desespero. É real demais. E por mais real que seja, agente nunca vai ver. Só nessas horas que tá roxo demais pra tentar alguma coisa.
Como a causa é algo tão subjectivo, e tem intensidades diferentes pra cada um acho que o melhor que eu posso fazer é ser um pesinho da solução. Sei porque, por mais que este mundo consiga alienar nossa consciência, ele nunca vai conseguir alienar a nossa alma. E apesar de a felicidade residir aparentemente numa quantia obscena de dinheiro, não é verdade. É cliché, mas é verdade. É verdade porque eu sei que se eu pedir pra você procurar na sua mente uma das melhores lembranças que você tem, você não conseguiria colocar um preço nela. Nossa alma se alimenta de coisas diferentes do que se alimenta nosso ego.
É é da nossa alma que devemos cuidar, porque ela está lá, persistente, batendo desesperadamente na porta dessa minha rotina mecânica, desses hábitos pré-concebidos, desses sachets cheirosinhos dentra da minha gaveta de meias impecavelmente dobradas. Existe o certo, o errado e existe todo o resto. Se eu não abrir a porta de vez enquando, um dia desses ela acaba explodindo e derrubando tudo de uma vez .
Eu, eu assim, sem disfarce nem fantasia me alimento de coisas banais: de edredons velhos na sala em domingos normais, e toda a família reunida, brigando pra saber que canal agente vai assistir; De risadas de crianças correndo no quintal, risadas, mesmo com o pé sangrando de jogar bola no asfalto; De poesias de amores absurdos, de livros não importantes, de abraços apertados, de dançar até as nove da manha, de ouvir os casos antigos do meu avô, da história de como meus pais se apaixonaram, das fofocas de quem eu conheço, do beijo de boa noite, daquele dia que minha mãe deixou eu escolher dois chocolates no super mercado ( eu só podia escolher um), Do perdão que eu me permiti doar; Daquela vez que ele gritou "eu te amo" bem alto, no meio da cidade, pra ver se a lua me convencia, daquela caixinha de cartas antigas qeu eu guardei, que tá sempre tão empoeirada.